A macaca que devorava jornais (fábula)
A macaca que devorava jornais (fábula)
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Logo de manhã bem cedo, a macaca levantava-se ainda despenteada, colocava o café a fazer depois de moer o grão que enchia a casa de um aroma delicioso e torrava uma fatia de pão. Entretanto, ia à porta de casa para apanhar o jornal da manhã com as notícias fresquinhas. Colocava os óculos de ler e passava os olhos pelas gordas da primeira página. Depois pousava o jornal, espreitava pela janela para ver quem passava na rua e para perceber como estava o tempo. Voltava à torradeira para tirar o pão e passar manteiga de amendoim. O café estava pronto e já poderia verter para uma chávena. Os aromas ganhavam corpo e multiplicavam boas sensações. Depois passava para o lado da janela onde estava a sua cadeira favorita para ler o jornal, enquanto saboreava o amendoim na torrada acompanhado com um bom café das sanzalas. Depois de ler as gordas, já a torrada ia a meio, ficou a saber quem ganhou as eleições no Brasil, coisas que ela já havia deduzido há muitos meses. A guerra na Ucrânia continuava com avanços e recuos e os mercados financeiros tiravam partido disso. As bolsas de valores continuavam a subir, porque o fornecimento de armas de guerra, equipamentos e víveres faziam crescer a economia de alguns países. Mas isso, a macaca que sabia ler, também já sabia.
A macaca tinha uma mundividência superior à dos humanos, só não sabia falar e emitia os sons próprios da macacada. Dominava o conjunto de intuições próprias dos humanos, a cultura e a ciência construída pelos humanos. Sabia identificar perfeitamente as falhas humanas. Sabia também, através das notícias dos jornais, onde é que a humanidade iria perecer. O desequilíbrio ambiental é notícia diária. As cheias, os fogos descontrolados, as epidemias, são sinais que a macaca que sabia ler jornais, conhecia há muito. Desde o momento que foi retirada do seu habitat natural, percebeu que algo de errado estava a acontecer. Ela tinha uma intuição natural para aprender os sinais humanos do desespero, do medo, da desgraça e conseguia perceber para onde o mundo se estava a dirigir.
Estava na hora de sair à rua, mas antes ficou presa na página do jornal onde falava do incêndio que lavrava na Amazónia e havia sido provocado pelas queimadas do homem e ao desmatamento. Já nem a seca conseguia provocar tantos incêndios e de tal gravidade. Depois de terminar aquela triste leitura e de escovar os dentes, passar o rímel nos olhos, o batom nos lábios, calçou os sapatos e saiu à rua.
Naquele dia, a macaca que sabia ler e interpretar as notícias dos jornais teve azar. Cruzou-se com uma brigada anti-macacos no meio da rua e não teve por onde fugir. Por muito que ela quisesse comunicar, os homens não souberam interpretar os seus apelos. Prenderam-na e levaram-na para o jardim zoológico, para junto dos seus, da sua espécie.
Limitava-se a ver adultos e crianças a querer tocar no seu pêlo e a acenar com um amendoim. Ouvia gritos estridentes das crianças e faziam selfies tendo como fundo a macaca que sabia ler jornais e o destino de toda a humanidade.
O que mais lhe fez falta em cativeiro, foram os jornais com as notícias fresquinhas.
Perdeu o apetite e morreu de tédio.
31-out-2022
João Pires
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