Da minha Janela

Da minha janela eu vi os tanques militares a desfilarem pela avenida, espingardas ornamentadas de cravos vermelhos, com militares em seu redor, cercados pelo povo que veio à rua, para celebrar o fim regime ditatorial do Estado Novo. Havia abraços, beijos e muita confusão. 

O Movimento das Forças Armadas teve um papel ímpar há 47 anos atrás e ficará para sempre na história de Portugal. A partir de então, apesar do povo não saber o que fazer com a liberdade, pois não estava habituado, foram recebidos os retornados das ex-colónias que vieram ajudar ao progresso português. A redução da taxa de analfabetismo, os cuidados na saúde e muitos outros benefícios foram entrando na vida dos portugueses.

E este pedaço de história portuguesa recente tão importante para o desenvolvimento económico e social do país tem sido comemorada anualmente na casa da democracia. Logo aqui acontece um desvirtuar do dia da liberdade. O 25 de Abril deixou de ser do povo e comemorado entre o povo para passar a ser uma efeméride a ser celebrada pelos representantes do povo. E todos os anos tem sido assim. Ano após ano. Os discursos são recorrentes e vão enaltecendo e recordando o passado, dando o devido destaque aos capitães de Abril.

Da minha janela

As comemorações do 25 de Abril de 2020, serão diferentes das anteriores. Os participantes serão reduzidos a 130 pessoas e irão marcar presença na Assembleia da República, ainda não se sabe se munidos de equipamento de protecção individual. Os discursos irão certamente reconhecer os capitães de Abril, pessoas indissociáveis da Revolução dos cravos e poderão tocar nos novos capitães de Abril, dirigindo-se ao pessoal da saúde e tantos outros que fizeram com que o país não parasse, nem por um instante. 

Provavelmente os participantes das comemorações do 25 de Abril irão estar a discursar mencionando os novos capitães de Abril que se encontrarão a trabalhar naquele momento. Irão estar a falar da liberdade e do momento em que o povo veio à rua para portugueses que estão confinados nas suas próprias casas, sem poder vir à rua, sem a liberdade dos outros anos.

Não falarão certamente do medo da morte causada pela infecção do vírus, nem falarão do medo da vida, motivada pela recessão económica que aí vem. Não irão falar dos 6.000 casais desempregados, nem dos quase 400.000 desempregados. Talvez   os discursos não se dirijam a essas pessoas, porque irão falar essencialmente do passado.
Gostaria de ver uma palavra de esperança, quanto ao futuro, como vai ser encarada a recessão económica, agravando os números atrás citados.

Depois de ouvir repetidamente pela boca do governo e do Sr. Presidente da República: FIQUE EM CASA, ratificada pela declaração do estado de emergência, é com perplexidade que se assiste ao anúncio por parte do Governo, da celebração do 25 de Abril, nos moldes habituais, embora com apenas 130 pessoas, mas em condições contrárias às orientações da DGS e SNS. Concentração de pessoas (governantes) num espaço confinado em tempos de pandemia, numa altura em que se pede para que as pessoas (governados) fiquem em casa. Talvez os governantes estejam imunes ao vírus.

Provavelmente o confinamento irá durar para lá do Verão e em Outubro será garantida a continuidade do confinamento. Será mais fácil governar um país em confinamento? Provavelmente sim, pois as manifestações estão suspensas, em nome dos vírus e de repente o povo ficou mais preocupado com a pandemia, que outras questões que vinham a preocupar o país até à chegada do vírus.

Em nome do vírus, pode chegar-se facilmente a uma ditadura moderna e se o cidadão for obrigado a fazer-se acompanhar obrigatoriamente de um telemóvel para registar os locais por onde anda, registar a sua temperatura e, em caso de febre, fazer despoletar um sino em qualquer departamento, ou até exibir a bolinha verde (está autorizado a circular) ou a bolinha vermelho (quarentena obrigatória). Talvez venha a ser realidade o certificado de imunidade, atribuído a todos aqueles estivessem imunes ao covid-19, de modo a poderem retomar o trabalho e sem risco de contágio. Uma perigosa sugestão dando espaço ao biopoder e à biopolítica. Discriminação pelo empregador, que passaria a exigir tal certificado no momento da contratação.

Dia 25 de Abril, o povo não sairá à rua porque está confinado. Tem apenas direito a assistir às comemorações do 25 de Abril, a partir do pequeno ecrã. Saudáveis, mas em casa e o vírus em liberdade.

Da minha janela, verei árvores em flor e uma criança do outro lado da rua, que brinca na sua janela com soldadinhos de chumbo e tanques de guerra.

21 de Abril de 2020

João Pires

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